domingo, 28 de outubro de 2012

O bilhete

Nome: Américo Soares Teles
Idade: 35
Nacionalidade: Portuguesa
Profissão: Carpinteiro
Estado Civil: Casado
Custo do Bilhete: 5,680$00

O avô Américo guardou o bilhete de ida para o Brasil, o que não surpreende. Aquele papel representava uma odisseia a que poucos se atreviam. Era uma oportunidade de mudar tudo. Para melhor. Um ato de coragem por um homem que nada temia. Quase quarenta anos mais tarde, o seu neto, que assina este blogue, guardaria bilhetes de concertos. Outros tempos, outras realidades.
A partida, a 9 de março de 1951, deu-se no porto de Leixões, rumo, numa primeira escala, a Lisboa. Depois, o vapor North King haveria de passar pela Madeira e por Cabo Verde, antes de navegar rumo à terra que Cabral encontrou em 1500. Contou o avô Américo, mais tarde, que aquele primeiro percurso do Porto a Lisboa fora horrível, que houvera quem quisesse ficar logo na capital portuguesa e voltar para trás, que ele próprio terá ponderado essa opção.
Na verdade, as condições de viagem não deveriam ser as melhores, e a inscrição "Bilhete de passagem de 3ª classe" deixa adivinhar isso mesmo. Que 3ª classe seria esta num navio de longo percurso? Daria "direito" a camarata conjunta e, muito provavelmente, a casa de banho comum. Nessa camarata, um conjunto de homens que não se conheciam de lado nenhum partilhariam histórias, expectativas, saudades, quem sabe, segredos, durante quase um mês. Mas também males físicos e indisposições que a viagem marítima implacavelmente traria, fazendo daquele espaço comum um pequeno inferno de odores pouco recomendáveis.
A imagem do lado direito mostra o verso do bilhete, onde podemos ler as condições que a Sociedade de Navegação Luso-Panamense impunha a todos os passageiros. É curioso ler que a empresa não se responsabilizava praticamente por nada de mal que pudesse acontecer a bordo como podemos ler no artigo 9º. O início do artigo 6º era, também, bastante "reconfortante": "A Companhia não garante a partida ou a chegada exacta do navio a qualquer porto (...)". 

sábado, 13 de outubro de 2012

O rei do norte

Foi um navio chamado North King que levou o avô Américo ao Brasil. Construído em 1903, foi um cargueiro alemão, antes de se dedicar ao transporte regular de passageiros entre Leixões/Lisboa/Funchal/São Vicente de Cabo Verde/Rio de Janeiro/Santos. Pertencia a uma empresa portuguesa chamada Sociedade de Navegação Luso-Panamense, levava bandeira e registo do Panamá e fez história por esses mares bastante navegados do século XX até ser vendido para demolição em 1957. Imagine-se que vim a saber, nas minhas pesquisas, que neste navio viajou o nazi Josef Mengele em julho de 1949, em fuga de Itália para a Argentina. Dois anos depois, e oriundo de um meio rural de um país fechado ao mundo, era muito improvável - ou até impossível - que o avô Américo soubesse quem era aquela infame personalidade, quanto mais que tinha pisado o convés do mesmo barco que, então, o levaria ao Brasil.

sábado, 6 de outubro de 2012

Uma espécie de morte

Naquele dia os gritos de Aurora ecoaram por toda a aldeia: Américo, um dos seus oito filhos, estava a caminho do Brasil. Como mandava a tradição, não havia lugar, nem tempo, para despedidas. Era ir, simplesmente, sem olhar para trás. Por isso emigrar era também, em parte, morrer. Uma morte física que moía aos poucos, que dilacerava por dentro. Aurora gritou a "morte" do filho, tendo provavelmente no pensamento o exemplo de Joaquim, pai daquela que era mulher de seu filho. Também ele emigrado noutros tempos em terras de Vera Cruz, tinha encontrado a morte por atropelamento nas ruas, já bastante movimentadas para a época, do Rio de Janeiro.
O avô Américo não se despediu dos pais, mas fê-lo com a sua mulher e os seus filhos. Abraços apertados e um "Volto breve..." fizeram o (im)possível para atenuar a dor da separação. Haveria de voltar cinco anos mais tarde. Com objetivos cumpridos e certamente muitas histórias para contar.